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domingo, março 31, 2013

O Sexo dos Anjos - Capítulo 10


Capítulo  1 - Conjuratio
Capítulo  2 - Tons e Cores
Capítulo  3 - Cherchez la femme
Capítulo  4 - Deuses primordiais
Capítulo  5 - Serpente
Capítulo  6 - O despertar
Capítulo  7 - Ascenção
Capítulo  8 - Amor Eterno
Capitulo  9 - Um anjo se prepara

Capítulo 10 -  Anima Mundi


Eros estava de volta à sala do templo primordial de onde, ipso facto, nunca havia saído.  Digamos que sua atenção estava depositada naquele local.
Se não é fácil compreender a atemporalidade, mais difícil ainda é conviver com ela.
Os humanos utilizam a linearidade do tempo para se acostumar com as situações. 
Para Eros, temporalmente onipresente, não existe o “passar do tempo”.  Tudo acontece simultaneamente, da origem do Universo até o seu final.
Sua atenção é o que define o “momento presente”. 
Boa parte da “má fama” de Eros em todas as épocas se devia ao fato de utilizar a energia sexual para capturar sua atenção e fixa-la num momento de seu interesse.  Fixar a atenção sem uma âncora externa é um exercício que exige disciplina.  E entre a disciplina e o prazer, Eros preferia o segundo.
A conversa com Gabriel acontecia ao mesmo tempo em que Eros vivia seus desdobramentos no tempo linear e também todos os eventos anteriores a esse momento.
E o mais intrigante é que cada ação em cada instante do tempo linear, modifica a realidade do instante seguinte, de forma que Eros “existia” simultaneamente em cenários permanentemente mutantes.
Em situações normais Eros simplesmente ignorava essa particularidade de sua existência.  Apenas vivia e deixava viver.
Mas considerando que sua própria existência estava ameaçada, Eros precisava agir de forma planejada. 
Organizar os acontecimentos no tempo linear de forma a inspirar Gabriel a construir os registros “acásicos” para poder acessá-los foi, sem dúvida, um golpe de mestre.  Com isso, Eros podia avaliar mais facilmente as possíveis “realidades” que se colapsariam em decorrência de suas ações.
Ele não era capaz de ler os pensamentos de Gabriel, mas conhecia os possíveis “futuros” decorrentes de sua concordância com os planos do anjo. 
Vislumbrava Gabriel, livre de suas obrigações como CEO do seu céu, visitando Sheila e Bianca  acompanhado de Celeste, promovendo orgias sensoriais. 
Observava a relutância de Celeste, doutrinada pelos padrões celestiais de conduta e pouco acostumada à nova versão libertina de seu companheiro de asas.
Bianca fundaria uma nova seita fundamentada no prazer e Gabriel faria aparições pirotécnicas durante as festividades orgásticas, embaladas pelo consumo contínuo de uma infusão de “salvia divinorum”. 
Sheila, sentindo-se abandonada e incapaz de aceitar a universalidade do amor de Bianca, morreria de overdose.
Os fundamentalistas evangélicos iniciariam uma guerra santa contra os “novos hedonistas” da seita de Bianca.
A igreja católica, cujo “número um” eleito de acordo com os planos de Gabriel passaria a defender o sincretismo religioso como forma de sobrevivência, se omitiria da disputa, acolhendo os fiéis decepcionados de ambos os lados.
O céu de Gabriel, sem sua liderança e enfraquecido pela liberalidade religiosa de seus “fiéis” desmoronaria e seria loteado pelos fundamentalistas, mas o anjo já  estaria acomodado em um agradável recanto intermediário reservado aos deuses das seitas menores, uma espécie de “roteiro do charme” do espaço divinal.
Ou seja, Gabriel conquistaria o que desejava.  Deixaria a desgastante posição de CEO de uma grande corporação celestial para ser dono de seu próprio pedaço de céu, sem ter que se submeter às aborrecidas políticas e zelar pelo cumprimento de normas coercitivas de conduta.  Sua religião teria apenas um mandamento: o prazer.
Mais difícil para Eros era avaliar se seu próprio objetivo seria atingido: revitalizar a “anima mundi”, a alma do mundo.
Em sua condição de existência eterna e atemporal,  Eros havia reconhecido que todo o Universo era animado por uma única força vital.
Alguns humanos, dedicados a pensar sobre a existência em diversas épocas, já haviam chegado a essa mesma conclusão por meio da razão.  Hindus, taoistas e estóicos, com abordagens distintas, professaram essa verdade.
Mas Eros era capaz de sentir essa força e sabia que sua existência era decorrente da reverberação dela pelos seres vivos.
Sabia que a realidade da qual sua existência fazia parte era construída pelos viventes, prioritariamente os humanos, que se apropriavam da anima mundi para construção da realidade de acordo com suas estruturas mentais.
Precisava focalizar sua atenção nessa energia e sentir sua oscilação.
E isso exigiria um colossal esforço de disciplinada concentração ou, pensou sorrindo, de Gaia.
- Nada me deixa mais presente do que fecundar a Terra .... – disse para si mesmo enquanto saltava no tempo para os braços da deusa.