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domingo, junho 18, 2006

Um dia de Copa

Tenho um amigo que leva a sério seu trabalho.
Ele é brasileiro, mas de família alemã, o que explica essa atitude atípica.
É claro que isso lhe causa alguns problemas de relacionamento no escritório.
Como não costuma jogar conversa fora nas proximidades da máquina do café e nem enviar e-mails com piadinhas para os colegas durante o dia, seu círculo de relacionamento é bastante reduzido.
Sua obsessão por realizar reuniões com pauta e horário para início e fim associada à vocação por respeitar essas condições lhe valeu, desde a muito, o rótulo de excêntrico.
É fácil entender, portanto, que o Alemão (como é carinhosamente chamado pelos colegas que, obviamente, não se lembram do nome dele) não estava preparado para o advento do primeiro jogo do Brasil na Copa.
O Alemão não participou das inúmeras reuniões informais que vinham sendo realizadas desde o início de maio nos corredores da empresa com o objetivo de definir o que seria feito durante os dias de jogo.
Foi surpreendido pelo e-mail do RH, enviado no dia anterior, que formalizava a liberação dos empregados uma hora antes do início do jogo. Tratava-se, claro, de uma mera formalização, já que todos estavam informados disso com antecedência, e o assunto vinha sendo constantemente discutido durante as partidas iniciais da Copa. Alemão, na verdade, nem sabia que o pessoal andava se encontrando na sala de reuniões do seu andar para assistir os jogos discretamente, a portas fechadas.
Meu amigo não havia planejado nada para o grande dia da estréia do Brasil. Não era particularmente um aficionado por futebol e estava mais preocupado com as diversas pendências relevantes de seu trabalho do que com as bolhas no pé do Ronaldo.
As 14h30, quando o servidor de e-mails deixou de funcionar, procurou o pessoal do suporte. Foi informado de que já haviam saído para assistir o jogo num restaurante próximo à empresa, junto com a turma do TI (que havia optado por um “long lunch”).
Decidiu, então, tratar dos temas que demandavam contato pessoal.
A iniciativa foi frustrada pelo fato de que não conseguiu encontrar viva alma no escritório, à exceção do segurança, dedicado à relevante tarefa de identificar a melhor posição de ajuste da antena de sua televisão portátil.
- O pessoal já foi todo embora – disse, sem olhar para o Alemão.
- Mas não era para trabalhar até as 15hs ?
- Sei não. Desde as duas já tava todo mundo da maior bagunça aqui embaixo...
Neste momento, Alemão se deu conta de que os buzinassos da rua não eram decorrentes do trânsito e que os estouros que ouvia tinham uma única razão: a rua estava em festa, colorida de verde e amarelo. Todo mundo, inclusive o guarda, vestia as cores do Brasil.
A maioria com camisetas. Os mais chiques combinando roupas nas cores da bandeira com detalhes em sobretom.
Subitamente, Alemão se sentiu deslocado e algo culpado. Onde estava seu senso de patriotismo afinal ?
Tomou uma decisão:
- Vou para casa assistir o jogo ! – disse para si mesmo, imediatamente engajado na nova missão.
O plano de trabalho era simples: passar no caixa eletrônico do sexto andar, retirar dinheiro (para o Táxi, que era dia de rodízio), comprar pipoca e ir para casa assistir o jogo. Lamentavelmente teria que ser sozinho, já que não havia mais ninguém por perto para convidar e o segurança não dava brecha para intimidades.
O caixa eletrônico estava em “atualização”, o que exigiu uma rápida modificação de planos: comprar pipoca com cartão de débito e passar no Conjunto Nacional para retirar o dinheiro.
Alemão saiu à rua decidido. Mais decidido ainda estavam os empregados do Supermercado: estava fechado.
Sem pipocar, Alemão dirigiu-se ao Conjunto Nacional. Ops: também fechado.
Tudo bem, havia uma agência do banco não tão longe do escritório.
Esta, felizmente funcionava e o dinheiro do Táxi pode ser retirado.
A questão passou a ser como conseguir um Táxi.
O ruído de fogos intensificou-se. O Brasil havia entrado em campo
No ponto próximo ao banco, 8 carros estavam estacionados à espera não de um cliente, mas de um gol do Brasil. Sugeriram ao Alemão que fosse até a Paulista.
Ele foi. Os Táxis não. Os poucos que passavam dirigiam-se, com ou sem passageiros, para o televisor mais próximo.
Quinze minutos depois aproximou-se vagarosamente um Táxi que já havia conhecido melhores tempos dirigido por um senhor idem. Alemão não estava em condições de escolher. Apeou e deu as coordenadas. O Táxi arrancou com o mesmo ímpeto que Ronaldo e sua bolha abdominal demonstravam em campo.
O Radio do carro lamentavelmente não funcionava e Alemão seguiu seu caminho sem qualquer pista sobre o que poderiam significar us Uuuhs e Oooohs que ouvia pelo caminho.
Caminho, aliás, que começou deserto, o que lhe deu a falsa sensação de que chegaria muito rapidamente em sua casa.
Ledo engano. Na medida em que se aproximava de seu bairro, Alemão foi encontrando os retardatários, cuja locomoção se via prejudicada pelos carros estacionados em fila dupla na frente dos bares da região, entupidos de torcedores que comemoravam o fato de existir uma copa do mundo bebendo em escala industrial.
Alemão resolveu descer do Táxi e seguir a pé. Excelente decisão: conseguiu chegar em casa a tempo de assistir o segundo tempo do jogo. Sem pipoca, mas com a sensação de dever cumprido.
Quando o Alemão me contou sua história, fiquei pensando ... assistir o segundo tempo do jogo Brasil e Croácia, sozinho, sóbrio e sem pipoca, olhando a bola indo e voltando sem fazer nada ... só conheço duas pessoas que são capazes de fazer: o Alemão e o Ronaldo.

2 comentários:

doppiafila disse...

Postaço! Adorei! E o final... super! Um abraço, Paolo
PS: este vai direto para o proximo livro (de crónicas)...

Flavio Ferrari disse...

Sempre muito gentil esse tipo ...