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sábado, dezembro 15, 2012

Tentando ser gentil




Saio com o carro da garagem e começa a chover. 
Quem mora em São Paulo costuma ter uma relação conflituosa com a chuva.  Ela limpa e humedece o ar, lava a poeira da cidade, enche as represas, mas faz grandes estragos e torna a cidade ainda mais caótica.
No carro, a associação com o trânsito é imediata.  Chove e a cidade para.
Mas já era tarde e não deveria enfrentar dificuldades no trajeto que faria.  Talvez algumas pequenas áreas de alagamento, já conhecidas e, portanto, evitáveis.
A chuva começa a “apertar” e eu vejo um casal na calçada, pego de surpresa pelo aguaceiro, acelerando o passo.  Algumas poucas sacolas na mão indicavam que estavam a caminho de casa, possivelmente não muito longe dali.
Eu, sozinho e confortavelmente protegido no meu carro, começo a inventar desculpas para conter meu impulso de oferecer uma carona.
Observei o casal por alguns instantes na sua inútil tentativa de proteger os pacotes da chuva, evitar as poças e fugir da água espirrada pelos veículos que passavam próximos à sarjeta.
Como todo paulistano, já passei por essa situação um par de vezes.  Não mata, mas é desagradável.  E me lembro de haver olhado para os carros nas ruas com certa tristeza.  Como a vida seria mais fácil se as pessoas fossem mais gentis umas com as outras.
Parei de pensar e decidi agir.  Encostei no meio fio, ao lado do casal, abri a janela e ofereci ajuda com meu melhor sorriso solidário:
-       Querem uma carona para fugir da chuva ?
O homem me olhou com certa surpresa e respondeu imediatamente, sem interromper a caminhada:
-       Não, obrigado.  Moramos aqui perto.
Seguiram apressados sob a chuva que aumentava exponencialmente de intensidade.
Fiquei ali parado por alguns instantes, observando-os se afastar.  A mulher dizia alguma coisa ao companheiro que balançava a cabeça e gesticulava com a mão livre.
Imaginei o diálogo:
-       Custava aceitar a carona do moço ?  Olha aí ...   a chuva vai estragar os pacotes !
-       De um estranho, Madalena ?  Você não lê jornal ?  Pensa que a vida é cor-de-rosa ?  Vai saber qual era a intenção dele ...  Melhor assim, molhados e vivos.  A gente embrulha os presentes de novo lá em casa.
-       Eu devia ter entrado no carro e deixado você ir a pé ... Olha só o meu cabelo.  Fui ontem no cabelereiro.  Claro que você nem reparou ...
-       Tá que eu ia deixar você ir sozinha com aquele cara ...
-       Me deixar tomar chuva por causa da sua paranoia pode, não é, Alfredo ? Da próxima vez eu vou ... se você quiser que venha atrás ...  E ainda dou um beijo de agradecimento só para você deixar de ser besta.
-       Anda, Madalena ... anda ...  Da próxima vez você tem é que lembrar de trazer um guarda-chuva.
Retomei o caminho com a convicção de que não é fácil ser gentil numa cidade grande e que o Alfredo teria um final de noite pior do que o meu.

Um comentário:

e daí? disse...

Ja passei por algo assim, fiquei ate sem graça, me olhei no espelho do carro, pra me certificar q não tenho cara de sequestradora...é dificil sim, gentileza hj em diz de tão rara, ficou suspeita!