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sexta-feira, outubro 20, 2006

O problema do Dr. Sodré

Dr. Sodré era uma sumidade nas artes contábeis, mas tinha critérios curiosos quando se tratava se sua vida pessoal.
Ainda nos tempos de repartição conheceu sua primeira mulher, Antonieta. Era a telefonista. Apaixonou-se por sua voz melíflua gradativamente, a cada ligação transferida para a expedição, onde trabalhava.
Quando a conheceu pessoalmente pareceu não se importar com o fato de ser feia.
Almeidinha, o assessor, protegido da diretoria, alertou:
- Sodré, meu querido ... ela é feia. E de forma epidêmica. Todo mundo comenta...
- Melhor assim, seu Almeida - filosofava. Evita problemas no casamento.
Não evitou. Antonieta abandou-o com os gêmeos um pouco antes da promoção para assistente da pagadoria. Fugiu com Juvenal, o pintor, deixando a reforma da casa pela metade.
Sodré, deprimido, dedicou-se ao trabalho e aos filhos. Poucos anos depois, num golpe de sorte, foi indicado para substituir o Badaró no posto de gerente, que decidiu antecipar sua aposentadoria para abrir um night club, com garotas bonitas dançando abraçadas em canos de bronze, como não cansava de repetir aos amigos que ficavam.
Foi justamente por uma dessas garotas que o agora "doutor" Sodré resolveu abandonar sua solteirice.
Badaró alertou:
- Sodrezinho, meu caro ... essa mulher não é para você. É experiente demais, se é que você me entende ...
- Melhor assim, Badaró - afirmou com segurança. Evita problemas no casamento.
Gisleine, ou Leine como era chamada na noite, até que gostava do Dr. Sodré. Mas não tolerava o trinômio casa, criada e crianças e acabou se engraçando com o professor de futebol do Juninho, o Paulão.
Sodré levou outra bola nas costas e voltou para a retranca.
- Não caso mais - afirmou para o Almeidinha, que agora trabalhava no ministério. É melhor ... evita problemas.
- O problema é você, Sodré - retrucou Almeida já no terceiro chopp. Quem quer fugir dos problemas não encontra a si mesmo.
Ainda assim, Dr. Sodré teria cumprido sua promessa não fosse a insistência de Dona Elenice, a vizinha viuva que sempre se oferecia para ficar com as crianças quando Sodré tinha que trabalhar até mais tarde.
Na despedida de solteiro, no clube do Badaró, o Almeida vaticionou:
- Agora sim, Sodré, acertartes. A Elenice é mulher para toda a vida.
E seria, não fosse Alicinha, a assistente do auditor, com quem Sodré passava horas revisando a contabilidade.
O preocupado Almeida ainda tentou avisá-lo:
- Toma tento, Sodré ... isso ainda vai dar problema no casamento.
- Nada disso, Almeida - respondeu com ar maroto. Dessa vez sou eu quem vai primeiro !

Moral da história: quem tem foco no problema nunca atinge o resultado.

4 comentários:

Anônimo disse...

uau! estilo quase nelson rodrigues prá concluir com frase de sábio chinês.

Amanda Magalhães Rodrigues Arthur disse...

Poxa! Quem dera um dia escrever assim...
Beijo, Amandita
PS: Jung diria que há aqui alguma sincronicidade. Conversava ontem mesmo com uma amiga sobre colocar o foco na solução, e não no problema. Je suis absolument d'accord, cher Flavio!

Anônimo disse...

O Dr. Sodré pode ser universal!

Flavio Ferrari disse...

A Udi tem razão, a inspiração foi nelsonrodriguiana, que tem personagens universais, como disse a Glaura. A idéia me veio quando passava pela Rua Dr. Sodré, travessa da avenida Santo Amaro.
E, Amandita, um dia vou escrever algo sobre sincronicidade e atenção ... quem me dera um dia escrever assim, como Rodrigues e Rodrigos ...