Conhece-te a ti mesmo

Eis-me, então, disposto a consultar o Oráculo de Delfos.
A sacerdotisa Tata me conduz à entrada e dou de cara com a inscrição: "Conhece-te a ti mesmo".
- Meio redundante, não ? - pergunto, para quebrar o gelo.
- É uma recomendação direta de Apolo - afirma, constrita. Não irás encontrar as respostas que buscas em outro lugar que não em ti mesmo...
- Você tem idéia de quanto custa uma passagem de avião para a Grécia ? Vir até aqui para você me dar um conselho desses ? Parece médico receitando Aspirina ... eu, hein ? Pelo menos me apresenta para algumas musas ... ou uma ninfinha bonitinha aqui do Parnaso.
Mas, a essa altura, os gases psicotrópicos que emanavam do interior do templo já faziam efeito.
Tata desapareceu e vi-me diante de um espelho esfumaçado, que refletia a minha imagem sobreposta à de um sujeito que prontamente identifiquei como Apolo, embora não tivesse sido apresentado formalmente.
- Flavio ... - estranhei a forma pela qual pronunciou meu nome. Preparado para encontrar-se ?
- Na verdade, eu passei por aqui porque ouvi dizer que esse era local onde viviam as musas e ninfas. Aí, aproveitei esse negócio de oráculo para fazer algumas perguntas ....
- Todas as perguntas se resumem a uma só: "Quem sou eu ?"
- Ué, pensei que fosse Apolo ...
Apolo, ou quem quer que fosse, pareceu meio aborrecido.
- Quis dizer "você", Flavio. Quem é você ? Essa é a pergunta fundamental.
- Bem, meu caro Apolo ... já gastei uma baita grana em alguns anos de psicanálise e não descobri. Com todo respeito, não vai ser na próxima meia hora que vamos resolver isso, não é ? Não posso perder o ônibus da excursão, você sabe ...
Apolo esvaneceu-se e sobrou apenas minha imagem no espelho.
Mas era uma imagem diferente, como se estivesse olhando para outra pessoa, familiar, mas desconhecida.
A imagem me perguntou:
- O que é mais importante para você, Flavio ?
Sem pensar, respondi prontamente:
- A liberdade.
- E o que você não consegue aceitar ?
- A mentira, a omissão, a manipulação, a enganação.
- Qual a sua maior exigência ?
- O respeito, em todas as suas formas.
- E como ...
- Posso interromper ?
- Diga ...
- Isso está com a maior cara de meme ... e eu destesto memes ... Dá para mudar de alucinação ?
Imediatamente, a névoa se tornou mais densa e o espelho desapareceu.
Quando dei por mim, estava deitado com a cabeça repousando sobre o colo de uma ninfa, que acariciava meus cabelos, enquanto outras duas serviam-me frutas e vinho.
- Assim está bem melhor - comentei em voz alta.
A ninfa do cafuné fez um biquinho, olhou para mim com aquela carinha linda de olhos apaixonados e disse:
- Ah, Flavinho ... me fala de você, vai ....
- Bem, para começar, não consigo resisitir a um pedido de uma mulher que me olha com paixão ... E já que você pediu, vou tentar responder, embora seja muito difícil falar de mim mesmo.
- Me sinto paradoxal...
- Sou apenas mais um, e ainda assim, único...
- Não sou melhor, não sou pior, não sou igual ... apenas sou.
- Sou curioso, reflexivo, exigente mas compreensivo. Não do tipo que perdoa, porque não há o que ser perdoado. Mas que procura entender e conviver.
- Sou de uma simplicidade complexa. De um acolhimento desafiador. Conviver comigo na superficialidade é fácil. Na intimidade pode ser intimidante.
- Meu maior prazer é dar prazer.
- Minha maior realização é ajudar uma pessoa a encontrar a liberdade para ser.
- Meu maior defeito é, talvez, a sedução. Um agradável caminho até o coração das pessoas que trilho compulsivamente.
- Ah .. e a minha característica mais irritante é o senso de humor. Não consigo levar a vida muito a sério. Gente séria costuma se aborrecer bastante com isso.
- Estou agradando ?
- Eu é que te pergunto, Flavio ... estás agradando a ti mesmo ?
Levantei de um pulo. A ninfa havia sumido e era Apolo quem me fazia cafuné.
- Põ, que sacanagem !!! Não dá para confiar nesse lugar.
- Agora você encontrou o caminho para conhecer-te - Apolo sorria maroto.
- Como assim ?
- Você falou muito, mas não havia tocado no ponto fundamental da tua personalidade. A confiança. A necessidade de controle. Não se pode confiar naquilo que não se controla.
- ??????
- Essa é a resposta para todas as perguntas que você não fez. Controle é uma ilusão...
Apolo, o espelho, as ninfas, tudo desapareceu.
A buzina do ônibus da excursão tocava ensandecida.
Sai da gruta a passos apressados.
Fui o último a chegar. A guia me olhou com irritação, mas não resistiu ao meu sorriso de desculpas e ao olhar guloso para seu belo par de seios.
Sentei-me, pensativo.
Na mão uma pequena flor de laranjeira, que havia retirado dos cabelos da ninfa.