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sábado, fevereiro 24, 2007

Crônicas da vida empresarial: O BEIJO

- Você está sendo muito radical, Jailton...
- Noupe ! Suspenda a crítica ... comece a olhar em volta. Use sua sensibilidade. Atenção para olhares, gestos, textos e subtextos ...
- É a correria do dia-a-dia. Mas à noite, nos finais de semana .... - Rodolfo resistia.
- Não Rodolfo... acabou.... sumiu .... é a robotização. É como se estivéssemos nos dando conta de que o livre arbítrio não existe. Então, para quê ?
- Mas veja a Estela, por exemplo ...
- Uma exceção, Rodolfo. E por isso tão apaixonante. A Estela tem tesão. Aliás, deveria ser teZão, com “z” maiúsculo, pelo zumbido ionizante. Ela não se importa, não tem planos, não tem projetos. É como se lá no fundo soubesse que não tem escolha. Aproveita o dia .. carpe diem ...
- Ontem mesmo, Jailton ... na reunião de lançamento do novo produto ... todo mundo estava vibrando !
- É isso, Rodolfo. Todo mundo cotidianamente apático e “vibrando” com o lançamento de um novo produto. É como soprar a vela do bolo, sem o bolo. Outros tempos. A garotada só quer saber de profissão, carreira, trabalho, planos. Claro que, além disso “TEM” que se divertir. Tem que namorar, tem que casar ou não tem que casar, tem que viajar. Mas é “TEM”, do verbo “sou obrigado a”. Veja aquela morena entrando ali, com o bonitão de jeans.... Dá quase para ver a coleira. Atenção na atitude, no olhar da garota ... Percebe ? Missão cumprida ! Tenho um namorado bonito, hoje é quinta-feira e vou tomar dois chopes, comentar sobre o projeto novo, exibir meu sucesso e voltar para a casa para arrumar minha gaveta de calcinhas... E acredite Rodolfo, essa garota tem uma das mais lindas gavetas de calcinhas de que se tem notícia. É lá que está toda a sexualidade reprimida ... aliás, reprimida não, sublimada.
- Talvez seja uma conseqüência desse momento histórico, mais racional, mais consciente, distante da religiosidade, Jailton - Rodolfo estava verdadeiramente incomodado.
- O cacete, meu caro. Nada mais condicionante do que a religiosidade no sentido em que a praticamos nos últimos 500 anos. Substituímo-la por condicionamento autógeno, da pior espécie. Estamos nos transformando em escravos de nós mesmos.
Rodolfo encheu novamente o copo de cerveja com um suspiro desanimado.
- Fazer o quê ?
- Ações de desautohipinose ...
- ???
- Beijar, por exemplo ...
- Me perdi ! - a expressão indefesa do Rodolfo era reforçada pelo “bigode” de espuma.
- Ta vendo aquela garota ali, blusinha de seda, sem sutiã, cara de gerente financeira ? – Jailton balançou a cabeça em direção a uma mesa onde duas mulheres particularmente bonitas e bem vestidas conversavam com ar sério. Veja só ...
Jailton levantou-se e, vestido de seu sorriso maroto-ingênuo caminhou a passos lentos e determinados em direção à mesa.
A mistura de lâmpadas incandescentes e frias, refletidas nos detalhes de bronze do bar que já havia sido um restaurante sofisticado nos bons tempos, fotografava um quê de cinema eurpeu.
Rodolfo assistia em slow motion.
A garota captou o movimento com um olhar rápido e caprichou na empáfia, sem, contudo, intimidar Jailton que prosseguiu até deter-se ao lado da mesa, ainda sorrindo, buscando o contato direto com os olhos da vítima.
A amiga parou de falar. Ambas voltaram-se para Jailton que sustentou o olhar da garota, desarmando-a gradativamente.
Sem dizer nada, Jailton deu o último passo em direção à mesa e inclinou o corpo, aproximando-se como se fosse contar um segredo.
A garota, olhar capturado, demorou alguns segundos até perceber o que estava acontecendo.
Subitamente alarmou-se, mas já hipnotizada, tudo que pode fazer foi esboçar um débil “não ...” com um olhar infantilmente assustado.
Jailton murmurou um categórico, mas suave, “sim” e, sem desviar o olhar por um segundo sequer, encostou seus lábios nos dela, colocou a mão direita em sua nuca e beijou calma e inexoravelmente.
Atônita e tensa no início, a garota foi relaxando perceptivelmente na cadeira e correspondeu ao beijo com timidez.
Jailton afastou-se, ainda com o mesmo sorriso.
- O que foi isso ? – a garota perguntou, voz trêmula.
- Um beijo... – Jailton respondeu - ... só um beijo. Um presente meu para você, e seu para mim.
Tomou a ponta dos cabelos longos da garota, deixou-os escorrer entre os dedos, deu sua famosa piscadela acompanhada de um movimento de beijo à distância e afastou-se sorrindo, como se fossem velhos amigos que haviam se reconhecido e cumprimentado.
De volta à mesa, encontrou um Rodolfo pasmo.
- O que foi isso ???
- Um beijo, Rodolfo... só um beijo. E por tão pouco, ela já não será mais a mesma mulher.

7 comentários:

Ernesto Dias Jr. disse...

Esse troço tá ficando autobiográfico...

Udi disse...

...e desde o início o Jaílton me despertou interesse. Mas se isso for autobiográfico, então só se for autobiografia das fantasias.

Flavio Ferrari disse...

Meus caros ...
As crônicas tem um quê autobiográfico na medida em que são inspiradas pela realidade.
Jailton, por exemplo, teve seu perfil inspirado em 3 pessoas com as quais me relaciono (2 homens e uma mulher), mas adquiriu personalidade própria.
Esse último post foi inspirado por uma conversa entre amigos na noite anterior, e por alguns acontecimentos reais que comentei com o Ernesto (obviamente preservando a identidade dos demais participantes)- daí seu comentário irônico.
Resumindo, portanto, as crônicas não são fantasias autobiográficas (o que significaria que eu estaria colocando no papel minhas fantasias pessoais). São totalmente ficcionais e, algumas vezes, construidas a partir do aproveitamento e adaptação de experiências pessoais.
Uma das coisas interessantes desse processo é que quando transponho acontecimentos reais para o mundo ficcional, adaptando-os aos contexto dos personagens, algumas pessoas reconhecem trechos da história, por protagonismo ou confidência, e se divertem observar sua recontextualização nas crônicas.
Se um dia você tiver curiosidade, Udi, tomamos um café e eu te conto alguma coisa dos bastidores (sem expor ninguém, claro !)...

Amanda Magalhães Rodrigues Arthur disse...

Sábio Jailton...

Anônimo disse...

Udi,

Eu aceitaria o café... Sou uma das que me divirto com a capacidade do Flávio de juntar perfis e acontecimentos distintos em uma mesma história ou pessoa...

Udi disse...

Flávio, eu jamais recusaria um convite seu prá um café (vide minha frequência a este) mesmo que não fosse prá um assunto tão interessante como os bastidores das "Crônicas da Vida...".
O convite já está aceito!
(valeu o incentivo, Ti!)

Anônimo disse...

Um beijo roubado e o mundo amanheceu diferente do que se conhecia. O beijo roubado traz no susto um sorriso e um suspiro no encantamento.